segunda-feira, 30 de março de 2009

A cidade de ontem



A cidade de ontem sob camadas e camadas da cidade de hoje. Imagens sobrepostas que descasco em busca daquele momento em que o riso cristalino cortou o sol da manhã. Era um verão. O primeiro biquini ia passear na areia, junto com o baldinho e a pá. O calor era capaz de fritar os pés, mas não àquela hora do dia. Chapéus, óculos, água. A meio caminho ficava a árvore, debaixo da qual se descansaria após o passeio de bicicleta e de onde se vê o mar quebrar incansavelmente na pedra. Ainda está lá. O que terá feito o mar à pedra durante todo este tempo? Não existe mais a calçada que sofria com as rodas dos patins embalados pelo vento noturno. Bifurcou-se, mudou de curvas, ganhou uma rua e perdeu o banco onde sentados sonhamos. A brasa que fervia o óleo que fritava o acarajé traçou um arco, desgarrando-se do balanço da sombra dos galhos entrelaçados. Espalhou-se no meio da praça. E os filhos sentem o gosto do dendê, observando as moças que passam, filhas de outros passos que camadas antes estiveram ali e em breve levam netos a andar de velocípede. O constrói e desmancha dos circos, dos parques, dos palcos pulsa na areia, cada vez se inventando um adereço. O caminho até a escola parece tão mais distante agora. Na boca, o sabor da banana real que só quem comeu sabe. Viro a esquina e encontro com a aula de piano, com a curtição que era experimentar todos os sons logo que a professora se afastava. Os primeiros carnavais - mortalhas, caretas, fantasias, blocos, bandas, clube... músicas que não tocam mais. Sinto gosto de sal na mão. Dou-me conta de que estivera contando ondas por horas e ainda não havia percorrido metade das paredes da memória. Esta, como um grande mural de mim mesma, expunha-me à visitação. Caótica, embaralhada, mosaico de Tempos, que sentam juntos à hora do almoço fazendo a maior algazarra; projetam-se no espaço sobre a cidade visível, e apertam-me os olhos tentando reconhecer os traços dos transeuntes. Cartões postais, fotografias, fragmentos de vozes boiando no interstício entre os neurônios e preservados em impulsos elétricos, que vez por outra me dão um choque na base da nuca. Fazem isso só para me recordar de ajustar o foco e registrar novas imagens. Cheiros também. Cheiros são importantes, como o perfume que usava outro dia e que o deixava... não, não era outro dia. Rio, pensando que a cozinha daquele apartamento tinha um sentido totalmente diferente para você. Faço sinal para que a menina me leve até o outro lado, enquanto me ajeito na cadeira. Fico feliz por lembrar e por esquecer.


(Iêda Lima)
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Imagem - montagem a partir de foto do clipart do powerpoint

10 comentários:

  1. Ieda,
    Em se tratando de cidade, além de fria, Curitiba ficou cinza - sem as suas alegres e vivas cores.
    Please, faça como a Primavera, mesmo que de vez em quando, nos permita, mais do que (virtualmente) ver, mas, abraçar, você - fonte inesgotável de coloridas luzes de sabedoria e presença de espírito.
    Bjs saudosos
    Sérgio
    =======

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  2. A vida passa e as lembranças vão escrevendo em nossa memória uma história, que pode ser representada em um livro, o livro que conta a vida de cada um... alguns com muitas histórias felizes outros nem tanto assim, mesmo que nem tudo seja um mar de rosas sempre sobram algumas lembranças.
    As lembranças são as únicas que jamais me deixam, mesmo quando todos se vão, mesmo quando não há mais nada, elas não me abandonam, estão aqui junto a mim se fazendo presentes em cada aroma, nos gestos que revejo, nas fragâncias... Tudo me traz de volta uma delas, um ritmo, uma flor ou uma palavra. Queria tirá-las de minha mente e quem sabe revivê-las... E quem sabe, ser feliz outra vez.

    Bom que você 'voltou'!
    beijo,
    Mauro Varandas.

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  3. Oba, Iêda, voltou?! Diga que sim. Agora sai a nossa entrevista, diga que sim!

    beijos

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  4. Que bom poder te acompanhar por esse passeio pelas paredes de sua memória!...
    Estava sentindo falta de suas palavras, fico feliz que tenha voltado!

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  5. Lembrar e esquecer: qual será o melhor?
    :(
    António

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  6. Oi Sérgio,

    Que linda sua mensagem!
    Preciso mesmo visitar vocês e a bela cidade de Curitiba.
    Saudades de vocês!!
    Abraços,
    Iêda

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  7. Oi Mauro,

    É maravilhoso poder ter lembranças... e poder passear nelas novamente e novamente e novamente... E melhor que tudo isso, é poder construir novas memórias. Desejo que vc venha a viver muitos e muitos momentos felizes!!

    Abraços,
    Iêda

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  8. Oi Vanessa,

    Como vê, estou voltando aos poucos. A entrevista vai sair sim!!

    Abraços,
    Iêda

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  9. Oi Lilian,

    Saudades também!! Estou voltanto meio que a prestações, mas espero poder em breve estar mais amiude na blogosfera e visitar com mais frequencia os amigos que fiz por aqui.

    Abraços,
    Iêda

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  10. Oi António,

    Boa pergunta! O que será melhor? Acho que dependerá...

    Abraços,
    Iêda

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