terça-feira, 14 de abril de 2009

O Bode


Era um barulho infernal, desses meio surdo, repetitivo, constante. Invadiu os meus sonhos e me tirou de lá, despertando minha manhã antes do relógio. Entrava por baixo da nuca, pelos ouvidos, executando algum tipo de vibração que causava erupções entre os neurônios. Nada de deliciosas sinapses, embaladas pela harmonia. Apenas a monotonia ensurdecedora. Nada da improvisação do jazz. Somente o tédio limpando o rejunte entre as lajotas. O chão já estava quase mudando de cor, tornando-se um bege esbranquiçado, com manchas que à distância pareciam nódoas circulares causando brotoejas no piso. A manhã avançava. Coloquei The Doors para tocar na esperança de abafar o ruído. “People are strange...”. Era o terceiro dia em que a máquina trabalhava à toda. Não conseguia entender qual era a expectativa de ainda limpar aquele chão. Consegui escapar das outras vezes, mas desta, não teve jeito. Fui à janela admirar a azáfama no quintal do vizinho. A dona dava ordens à empregada e ao ajudante, que esfregavam o chão com vassouras enquanto ela perseguia as bactérias com o jato dágua superpotente. No lado de cá, Jim continuava acendendo meu fogo e me dava alguma folga para a minha mente funcionar. A máquina parou para almoçar. Tive uma falsa alegria. O zunido voltou a encher o ar, ficando ali intermitente e uma oitava mais baixo o resto da tarde; quando finalmente reinou o silêncio... Ah, o silêncio!! Uma maravilha pontuada apenas por aqueles barulhinhos familiares que nos indicam que o mundo está vivo e girando – um carro que passa ao longe, uma porta que bate, um passarinho, alguém que acabou de entrar no prédio... e o espaço, e a amplidão que o silêncio traz. O bode saiu.

(Agora, algum louco, na certa chapado, grita em todas as variações possíveis o nome desta cidade. É até musical, o danado.)

(Iêda Lima)


Imagem obtida do clipart do powerpoint.

10 comentários:

  1. Difícil de entender, pois parece ser um pedaço de texto que faz parte de um maior. Mas a experiência me é familiar. Só entende quem passa...
    Esse barulho surdo-ensurdecedor é o peso oneroso de nossos pensamentos mais algozes. O superego regido por nossa caoacidade de auto-flagelação. Horrível situação que é quebrada por uma situação ultra-singular, como por exemplo: "Me ocorreu quando vi uma libélula 'brincar' na folha suja de uma árvore ordinária, à beira de uma rua sem graça e sem brilho".
    Tens uma linguagem poética, onde o sentido passeia firme nas caudalosas possibilidades da razão, levando de roldão a enormicidade do peso do lugar comum, do clichê da ação e das palavras incertas.
    Olha, diria que uma experiência ordinária carrega consigo a inefável realidade do nada. É tipicamente uma experiência existencialista, querida! Sartre é o grande mestre! Ele tem um livro chamado 'A Náusea'. É cheio dessas experiências de nadificação. 'Nadificação' é também um neologismo. Uma parte 'engraçada' desse livro é quando ele vê um mendigo mascando chicletes... Um espírito fraco cairia no PROZAC, o livro é muito forte! Realmente faz jus ao nome "Le Nausée".
    Beijo,
    Mauro Varandas.

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  2. Oi Mauro,

    O texto é aquele mesmo, nasceu assim. Não faz parte de nada maior. A não ser que eu resolva criar algo em torno dele. E é bem simples a coisa (que me moveu a escrever O Bode) - não vou nem te contar para não estragar todas as suas reflexões. Mas se o texto te fez viajar por questões suas e até te fez lembrar de suas leituras de Sartre... eu só posso ficar feliz!

    Beijão,
    Iêda

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  3. Bonito texto, me passa a impressão de um momento vivido em solidão. Abraços

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  4. Ieda
    Este bode costuma também fazer parte da minha vida, você tem razão, é terrível. Não sei se seria capaz de vivenciá-lo com a sua competência. Adorei, sem maiores divagações, não imagino necessário, êle diz tudo.

    Beijo, Cícero

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  5. Oi Victor,

    Obrigada pela visita!
    Que bom que vc gostou do texto.
    Abraços,

    Iêda

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  6. Oi Cícero,

    Bom ver você por aqui!!
    Fico feliz que tenha gostado (e tenho certeza que vc já tirou de letra bodes muito maiores).

    Abraços,
    Iêda

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  7. Bom seria se fosse possível comprar tubos de silêncio e sacar deles nessas horas, epirrar pela casa e... zzzzzzzz

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  8. Oi Márcia,

    Grande idéia!! Se vc achar desses tubos por ai, avise-me.

    abraços,
    Iêda

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  9. Resolvi escrever de novo rsrs. Essa coisa de opinião é meio complicada para alguns. Eu, por exemplo, não gosto de dar opinião. Gosto não se discute. Ou gosto, ou não gosto. Seria maravilhoso que todo mundo fizesse do stress e da agonia do dia a dia um tema literário; uma crônica daquele momento de agonia e infelicidade, aguardando a volta da normalidade. Como notei no seu texto, depois de várias leituras... rs a felicidade da gente é efêmera e aparece do nada, sem planejamento. O fim do ruído chato foi um alívio para você, como se você tivesse bebido uma caneca fria de água depois de ter andado sob um sol escaldante. A felicidade é só aquele momento: a transição entre o incômodo e a rotina; entre a dor e a ausência de dor; entre a tristeza e o esquecimento da causa da tristeza. Então, se conseguirmos armar uma equação na qual a felicidade só é sentida nos momentos de normalidade nas nossas vidas, todo mundo deveria viver sempre feliz. E não é! E não me pergunte porquê...! rsrs
    Beijo,
    Mauro Varandas.

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  10. Oi Mauro,

    Você provoca questões interessantes e me fez pensar: Será que é possível viver em permanente êxtase, feliz o tempo todo? Ou para vivenciarmos o prazer é preciso haver o contraste, uma situação anterior neutra ou negativa? O fim do ruído chato foi um alivio para o personagem da estória acima - será que o silêncio com os ruídos familiares foi mais valorizado naquele momento pelo personagem do que o seria em um dia simplesmente "normal"?

    Também não sei o porquê não vivemos todos felizes o tempo todo... (talvez tanta felicidade acabasse sendo entediante, quem sabe?). Mas sei que você pode voltar quantas vezes quiser e dar sua opinião - quer tenha gostado ou não.

    Abraços e volte sempre!

    Iêda

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