A cidade de ontem sob camadas e camadas da cidade de hoje. Imagens sobrepostas que descasco em busca daquele momento em que o riso cristalino cortou o sol da manhã. Era um verão. O primeiro biquini ia passear na areia, junto com o baldinho e a pá. O calor era capaz de fritar os pés, mas não àquela hora do dia. Chapéus, óculos, água. A meio caminho ficava a árvore, debaixo da qual se descansaria após o passeio de bicicleta e de onde se vê o mar quebrar incansavelmente na pedra. Ainda está lá. O que terá feito o mar à pedra durante todo este tempo? Não existe mais a calçada que sofria com as rodas dos patins embalados pelo vento noturno. Bifurcou-se, mudou de curvas, ganhou uma rua e perdeu o banco onde sentados sonhamos. A brasa que fervia o óleo que fritava o acarajé traçou um arco, desgarrando-se do balanço da sombra dos galhos entrelaçados. Espalhou-se no meio da praça. E os filhos sentem o gosto do dendê, observando as moças que passam, filhas de outros passos que camadas antes estiveram ali e em breve levam netos a andar de velocípede. O constrói e desmancha dos circos, dos parques, dos palcos pulsa na areia, cada vez se inventando um adereço. O caminho até a escola parece tão mais distante agora. Na boca, o sabor da banana real que só quem comeu sabe. Viro a esquina e encontro com a aula de piano, com a curtição que era experimentar todos os sons logo que a professora se afastava. Os primeiros carnavais - mortalhas, caretas, fantasias, blocos, bandas, clube... músicas que não tocam mais. Sinto gosto de sal na mão. Dou-me conta de que estivera contando ondas por horas e ainda não havia percorrido metade das paredes da memória. Esta, como um grande mural de mim mesma, expunha-me à visitação. Caótica, embaralhada, mosaico de Tempos, que sentam juntos à hora do almoço fazendo a maior algazarra; projetam-se no espaço sobre a cidade visível, e apertam-me os olhos tentando reconhecer os traços dos transeuntes. Cartões postais, fotografias, fragmentos de vozes boiando no interstício entre os neurônios e preservados em impulsos elétricos, que vez por outra me dão um choque na base da nuca. Fazem isso só para me recordar de ajustar o foco e registrar novas imagens. Cheiros também. Cheiros são importantes, como o perfume que usava outro dia e que o deixava... não, não era outro dia. Rio, pensando que a cozinha daquele apartamento tinha um sentido totalmente diferente para você. Faço sinal para que a menina me leve até o outro lado, enquanto me ajeito na cadeira. Fico feliz por lembrar e por esquecer.
(Iêda Lima)
.
.
Imagem - montagem a partir de foto do clipart do powerpoint